Reino Unido autoriza escritório de advocacia movido por IA; entenda

A iniciativa reacendeu o debate sobre os limites éticos e técnicos do uso de IA na advocacia
IA na advocacia Pexels

Uma decisão do Reino Unido trouxe à tona os debates sobre o uso de inteligência artificial no mundo jurídico. O Solicitors Regulation Authority (SRA), autoridade reguladora independente que rege os advogados e as sociedades de advogados em Inglaterra e País de Gales, deu aval para o funcionamento da Garfield.Law, o primeiro escritório de advocacia baseado em inteligência artificial (IA).

A iniciativa reacendeu o debate sobre os limites éticos e técnicos do uso de IA na advocacia. Especialistas questionam até que ponto essas ferramentas podem substituir tarefas jurídicas sem comprometer a confidencialidade, a imparcialidade ou a qualidade do serviço, especialmente em casos mais complexos.

Para o presidente da Comissão de Privacidade, Proteção de Dados e Inteligência Artificial da OAB SP, Solano de Camargo, o caso da Garfield.Law no Reino Unido não significou apenas uma autorização informal, já que a empresa foi efetivamente submetida à regulação da SRA, passando por um rigoroso processo de validação de seus serviços.

“A SRA exigiu que a empresa apresentasse protocolos concretos e efetivos para checagem humana da qualidade de seus documentos, confidencialidade, prevenção de conflitos de interesse e mitigação de ‘hallucinations’ de IA. Além disso, determinou que advogados inscritos no órgão assumissem a responsabilidade final por todos os outputs do sistema”, explica Camargo.

Marco regulatório

A operação é considerada um marco regulatório no setor jurídico, com a proposta de democratizar o acesso à justiça por meio de serviços automatizados, rápidos e de baixo custo.

Entre as ofertas estão cartas de cobrança por £2 e ações judiciais de pequeno valor por £50, sempre com supervisão obrigatória de advogados humanos. A empresa garante que tem mecanismos para evitar erros ou ‘alucinações jurídicas’, e só atua com consentimento prévio do cliente.

“A autorização formal da Garfield.Law não é apenas um feito tecnológico, mas um marco que impacta positivamente todo o universo jurídico. Ao ser regulamentada pela Solicitors Regulation Authority (SRA), a medida não apenas valida a IA como uma ferramenta jurídica, mas também estabelece um precedente global para o uso de tecnologia na prestação de serviços jurídicos”, considera Daniel Marques, diretor executivo da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L).

Daniel Marques, diretor executivo da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L)

Citando dados do relatório “Justice for All” do Fórum Econômico Mundial (WEF), Marques comenta que a inteligência artificial pode reduzir o tempo de tramitação de processos em até 30%, tornando a assistência jurídica acessível para pequenas e médias empresas e cidadãos.

“A medida da SRA demonstra uma compreensão de que a tecnologia é a resposta mais eficaz para escalar serviços jurídicos de baixo valor. Por isso, o regulador britânico abraçou uma abordagem proativa, estabelecendo as bases para que a IA seja utilizada para resolver um problema sistêmico: o “justice gap”. Ou seja: tem o objetivo principal de ampliar o acesso à justiça”, destaca Marques ao reforçar que a exigência de supervisão humana obrigatória é crucial.

“Eu diria até que é a chave para o sucesso de um modelo de negócios como este. Ela garante que, embora a tecnologia automatize tarefas repetitivas, o julgamento ético, a estratégia e o respeito às particularidades de cada caso continuem no centro da prática jurídica”, diz Marques.

E no Brasil?

Por aqui, essas mudanças seguem outra lógica. Escritórios de grande porte já utilizam soluções de IA em tarefas como análise de contratos e gestão de litígios em larga escala.

“No Brasil, o marco normativo é diferente. O Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94) reserva atividades como a postulação e consultoria exclusivamente a advogados devidamente inscritos na OAB”, diz Camargo. “Assim, não é possível considerar uma empresa de tecnologia, sem personalidade jurídica de sociedade de advogados, como um escritório que se submetesse à regulação da OAB. Uma iniciativa análoga a Garfield aqui muito provavelmente seria judicializada, gerando contestações quanto à legitimidade de atuação e aos riscos éticos envolvidos”, explica o representante da OAB.

Para a Comissão de Privacidade, Proteção de Dados e IA da OAB SP, as tecnologias de IA podem ser bem-vindas como instrumentos de apoio, desde que a revisão, a assinatura e a responsabilidade técnica final sejam exercidas efetiva e comprovadamente por advogados inscritos. “Sem essa supervisão profissional inafastável, qualquer empreendimento com esse perfil corre o risco de sufocar a dignidade da profissão e de enfrentar instauração de procedimentos judiciais e disciplinares”, afirma Camargo.

Marques, por sua vez, afirma que a ideia de resolver problemas de justiça com a IA é particularmente atraente para o Brasil, onde o Judiciário lida com milhões de casos e a burocracia frequentemente atrasa a resolução de disputas. “Por isso, eu diria que chegada de um modelo de escritório de advocacia baseado em IA no Brasil é uma questão de quando, e não de se.”

Vantagens x desvantagens

Entre os principais benefícios, Marques destaca a democratização do acesso à justiça, com redução de custos, o que torna a assistência legal acessível para um público maior. “A IA também traz eficiência e velocidade, sendo capaz de processar informações e gerar documentos rapidamente, agilizando o andamento de processos judiciais de menor complexidade”, diz.

Além disso, afirma ele, o uso da tecnologia ainda leva ao aumento da produtividade, pois advogados humanos podem se concentrar em casos mais estratégicos, que exigem negociação e empatia, enquanto a IA cuida de tarefas repetitivas. “Estudos indicam que a IA pode automatizar até 30% das atividades em escritórios de advocacia, liberando tempo para trabalhos mais estratégicos, conforme apontado pela consultoria Deloitte em seu artigo ‘The future of legal services'”, destaca.

Por outro lado, é crucial estar atento aos riscos. A mitigação exige transparência e auditoria constante. “Entende-se que em última instância, a IA é ferramenta, o profissional jurídico é quem a utiliza para as diversas necessidades de sua jornada”, diz Marques ao comentar que a responsabilidade legal sobre erros cometidos pela IA é outra questão complexa, mas a solução adotada pela SRA (a supervisão humana obrigatória) é um modelo eficiente que mantém a responsabilidade final com o profissional.

A segurança de dados também é um risco que deve ser gerenciados com protocolos de segurança robustos e a garantia de que o discernimento humano jamais serão substituídos. “Em resumo, a iniciativa do Reino Unido é um modelo que outros países, incluindo o Brasil, podem observar para traçar seus próprios caminhos na integração da tecnologia com o setor jurídico, garantindo que a inovação sirva ao propósito de um sistema de justiça mais eficiente e acessível”, finaliza Marques.

Crédito da imagem: Pexels

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