A IA já é capaz de fornecer sugestões de laudos extremamente precisos, acelerando processos e apoiando o trabalho dos profissionais da saúde
Especial para o Portal Intelligence.Garden
O futuro da medicina já começou — e ele é moldado por códigos, algoritmos e, sobretudo, pela capacidade humana de adaptação. A integração da Inteligência Artificial (IA) à prática clínica deixou de ser uma promessa distante para se consolidar como uma revolução silenciosa e crescente. Nos próximos cinco a dez anos, especialistas preveem uma transformação profunda na forma como médicos atuam, se comunicam e tomam decisões.
Os avanços são impressionantes, com destaque na área de exames de imagem. Algoritmos de visão computacional já são capazes de analisar radiografias, tomografias e ressonâncias com altíssima acurácia. Além disso, a IA já é capaz de fornecer sugestões de laudos extremamente precisos, acelerando processos e apoiando o trabalho de radiologistas, patologistas e clínicos em diversas frentes.
Mais do que substituir o profissional, a IA vem para ampliar sua capacidade de cuidar, principalmente em contextos de escassez de especialistas e sobrecarga do sistema de saúde. Algoritmos treinados são capazes de realizar triagens automatizadas, identificar padrões em exames com precisão elevada e oferecer suporte diagnóstico em tempo real. “A tecnologia não substitui o olhar clínico, mas amplia nossa capacidade de cuidar”, afirma Rafael Lobo, graduado pela Universidade do Sul de Santa Catarina, oficial médico da reserva da Marinha do Brasil e assessor técnico na TopMed Saúde Digital.
Aliada na decisão, não substituta
A ideia de que a IA tomará o lugar dos médicos é, para muitos especialistas, um equívoco. A decisão clínica continua sendo humana, sustentada por julgamento, empatia, escuta ativa e compreensão contextual — fatores insubstituíveis por qualquer máquina. “A IA aponta caminhos, mas é o médico ainda é o responsável pelas decisões”, ressalta o dermatologista Athos Martini, mestrando em Informática e Saúde pela UFSC e integrante da equipe global de sistemas de saúde da OpenAI.
Essa tecnologia tem mostrado especial impacto em áreas como radiologia, dermatologia e patologia, onde há grande volume de dados estruturados. Ainda assim, até mesmo especialidades tradicionalmente manuais, como a cirurgia, já vêm sendo transformadas por sistemas robóticos e assistência semiautônoma. “Na dermatologia e a na radiologia os resultados obtidos por IA já são tão bons quanto o de um profissional humano”, diz Athos.
Em todo caso, a avaliação do examinador ainda é subjetiva, como nos casos de doenças de pele, doenças psiquiátricas além de outras que exigem uma tomada de decisão mais rápida. “Em todos esses casos, a IA nunca será a responsável pelo paciente pois ainda não temos um modelo de corresponsabilidade com um provedor”, acrescenta.
Por outro lado, mesmo especialidades tradicionalmente manuais, como a cirurgia, já estão passando por uma transformação significativa. A cirurgia robótica, por exemplo, tem avançado de forma vertiginosa. “Com o tempo, poderemos ver sistemas semiautônomos — algo análogo ao que ocorre hoje na aviação moderna, em que o piloto supervisiona decolagens e pousos assistidos por computador, intervindo apenas em momentos críticos ou de incerteza. O cirurgião poderá atuar de forma semelhante, como um monitor clínico de alta performance, pronto para intervir quando necessário”, destaca o médico Rafael Lobo.
Mudança de mentalidade: do medo à parceria estratégica
O sucesso dessa transição depende não apenas da tecnologia em si, mas de uma nova mentalidade médica. “É preciso deixar de ver a IA como uma ameaça e passar a encará-la como uma parceira estratégica”, acrescenta Rafael Lobo. Para isso, médicos precisarão desenvolver duas frentes de habilidades: as soft skills — como empatia, comunicação clara e inteligência emocional — e a fluência em tecnologia, com ênfase na engenharia de prompt: saber fazer boas perguntas à IA e interpretar criticamente os resultados.
Apesar da adesão crescente entre jovens médicos, muitos profissionais experientes ainda enfrentam dificuldades para incorporar essas ferramentas à rotina clínica, seja por falta de formação técnica ou pela resistência à interoperabilidade entre sistemas — um entrave que, quando mal gerido, pode transformar a inovação em um obstáculo.
Dilemas éticos e de privacidade
A expansão da IA na saúde levanta dilemas éticos fundamentais. A responsabilidade por decisões clínicas apoiadas por algoritmos continua sendo exclusivamente do médico. “A tecnologia não pode ser tratada como um ente autônomo”, alerta Athos Martini. Além disso, a segurança e o uso ético dos dados sensíveis dos pacientes são prioridades absolutas em um cenário regido pela LGPD.
Outro ponto de atenção é o risco dos vieses algorítmicos. Dados contaminados por desigualdades sociais ou erros sistemáticos podem induzir diagnósticos equivocados. O treinamento de modelos em bases diversificadas e auditadas, assim como a supervisão humana constante, são medidas indispensáveis.
IA na prática: diagnósticos, condutas e comunicação
A IA já é capaz de propor hipóteses diagnósticas, indicar condutas terapêuticas com base em protocolos e até mesmo redigir prontuários automaticamente. Essas ferramentas permitem ao médico ganhar tempo, foco e presença durante a consulta, fortalecendo o vínculo com o paciente.
Ao contrário da ideia de distanciamento, a IA — quando bem aplicada — aproxima o profissional do paciente. Com monitoramento contínuo e alertas automatizados, o cuidado se estende além da consulta, promovendo segurança e personalização. Ao mesmo tempo, médicos se deparam com um novo desafio: pacientes que chegam com informações baseadas em IA, muitas vezes imprecisas e alarmantes. Isso exige maior habilidade de convencimento, empatia e comunicação por parte dos profissionais.
Um futuro promissor, mas humano
A medicina do futuro exigirá médicos com base técnica sólida, fluência tecnológica e, mais do que nunca, profundidade humana. “O avanço da IA deve libertar o profissional de tarefas operacionais para que ele se concentre no que há de mais essencial: o cuidado pleno, responsável e individualizado. Isso implica deixar de ver a IA como uma ameaça e passar a encará-la como uma parceira estratégica no cuidado ao paciente, o que exige abertura, curiosidade e disposição para aprender continuamente”, aponta o médico Rafael Lobo.
Para novos médicos, a recomendação é clara: mantenham a curiosidade viva, estudem com criticidade e não deixem de desenvolver suas competências humanas. Como resume Athos Martini: “A IA pode ser poderosa, mas é preciso usá-la com olhar crítico. O julgamento, a empatia e o toque humano ainda são — e sempre serão — insubstituíveis.”
Outro ponto crítico de resistência diz respeito à falta de interoperabilidade entre os sistemas. Isso porque quando a tecnologia não conversa de forma fluida com o prontuário eletrônico, sistemas laboratoriais, plataformas de telemedicina ou ferramentas de prescrição, a jornada do profissional se torna truncada e fragmentada. “Quando mal aplicada, a tecnologia pode acabar gerando mais trabalho e minar rapidamente o entusiasmo do profissional”, alerta Rafael Lobo.
Questões culturais e étnicas
Outro desafio do uso da Inteligência Artificial (IA) na medicina é garantir que os algoritmos sejam treinados de maneira ética, evitando vieses que possam comprometer o atendimento aos pacientes. “A IA aprende a partir dos dados que recebe, e se esses dados forem contaminados por distorções humanas, como preconceitos sociais, desigualdades estruturais ou erros sistemáticos de coleta, o sistema inevitavelmente reproduzirá essas falhas. Isso alerta para a importância de treinar algoritmos com bases diversificadas, auditadas e representativas”, aponta Lobo.
Segundo o médico, a IA amplia a capacidade de análise, mas o médico continua sendo o centro do processo de decisão clínica. “O verdadeiro diferencial está em saber como usar os dados da IA como aliada, sem perder de vista o aspecto humano que sempre foi — e sempre será — o coração da medicina”.
Além disso, é fundamental que se considere as diferenças étnicas e culturais nos dados que alimentam a IA, o que é ainda mais relevante em um cenário global de medicina.
Profissionais como o médico Athos Martini, que faz parte da equipe global da OpenAI, apontam que é preciso garantir que as respostas da IA não só respeitem as diferenças culturais, mas também sejam sensíveis às especificidades de grupos diversos, como nas medicinas tradicionais de culturas africanas, asiáticas ou indígenas. O desafio é que a IA precisa entender que cada paciente é único, com diferentes contextos culturais e étnicos.
“Isso implica que a IA seja treinada de forma a lidar com uma ampla gama de realidades e protocolos médicos, incluindo aquelas que envolvem práticas de cura não convencionais como a medicina tradicional chinesa ou as práticas de matrizes africanas”, diz Martini.
Por isso é essencial que o desenvolvimento de IA na saúde envolva profissionais de diversas partes do mundo, com diferentes formações e experiências, para garantir que o sistema atenda de maneira justa, precisa e sensível a todos os pacientes, independentemente de sua origem étnica ou cultural.
“Essas equipes são formadas por médicos de diferentes partes do mundo, que falam línguas diversas e seguem protocolos variados. As diferenças étnicas e culturais também precisam ser levadas em conta, o que representa dilemas éticos que a inteligência artificial precisa enfrentar”, complementa Martini.
IA na Medicina: As três frentes de suporte à decisão clínica
1. Algoritmos de Diagnóstico
- O médico coleta uma história clínica bem feita e realiza um exame físico adequado.
- A IA processa essas informações e sugere hipóteses diagnósticas com base em padrões reconhecidos.
2. Algoritmos de Tratamento
- A IA cruza protocolos médicos com grandes bancos de dados científicos.
- Recomenda opções terapêuticas personalizadas e baseadas em evidências para cada paciente.
3. Diagnóstico por Imagem
- A tecnologia interpreta exames como radiografias, tomografias e ressonâncias.
- Alta precisão na identificação de alterações e apoio na tomada de decisão médica.