Uma pesquisa recente do MIT (Massachusetts Institute of Technology) revelou um dado alarmante: 95% dos projetos de inteligência artificial generativa não conseguem acelerar a receita das empresas. À primeira vista, o número sugere um cenário de fracasso generalizado. Mas, na prática, ele pode dizer mais sobre a forma como o sucesso é medido do que sobre a efetividade da tecnologia.

Para analisar os dados de forma crítica, o Portal Intelligence.Garden ouviu diversos especialistas em inovação e transformação digital. A conclusão é que, embora os números causem desconforto sob a ótica da receita, eles não configuram um “desastre da IA”. Pelo contrário: refletem sobretudo a imaturidade das organizações no uso da tecnologia.
“Muita gente implementa IA com a expectativa de resultado rápido no caixa, mas sem pensar direito no problema que está tentando resolver. A IA pode trazer valor de várias formas, e nem todas aparecem como aumento direto de receita”, afirma Rafael Franco, especialista em tecnologia da informação e CEO da Alphacode, empresa que desenvolve projetos no ambiente mobile,
“Ao medir apenas impacto imediato na receita, é natural que o índice pareça negativo. O que vemos, na prática, são expectativas desalinhadas: a IA generativa tem grande potencial, mas exige integração, adaptação cultural e tempo para maturar antes de gerar resultados financeiros consistentes”, diz Cleber Brito, diretor de Segurança e Tecnologia da Informação da Foundever, líder global em experiencia do cliente.

Receita não é tudo
Segundo o estudo, a métrica central foi o impacto direto sobre faturamento. Porém, ao olhar apenas para esse indicador, ficam de fora ganhos intangíveis, mas igualmente relevantes, como eficiência operacional, redução de custos, insights mais ágeis e aprendizado organizacional.
Rafael Franco ressalta que, em muitos projetos acompanhados por ele, os maiores benefícios vieram justamente da eficiência: menos retrabalho, maior agilidade e melhor qualidade nas decisões. “Tudo isso tem valor, mesmo que não vire receita no curto prazo”, diz. “Também tem um efeito importante de aprendizado: o time começa a entender como trabalhar com IA, o que já é um passo enorme pra criar uma cultura digital de verdade”, diz.
João Paulo Ribeiro, especialista em cultura organizacional e CEO do Grupo Inove, avalia que medir o sucesso da IA apenas pelo impacto imediato na receita é um equívoco. Para ele, esse recorte desconsidera o tempo necessário para a maturação tecnológica e a adaptação cultural. Muitas iniciativas ainda estão em fase de aprendizado organizacional e, por isso, não podem ser julgadas apenas pelo retorno financeiro de curto prazo.
Cleber Brito, da Foundever, aponta que automatizar tarefas repetitivas, acelerar análises e apoiar decisões mais embasadas já gera valor significativo, ainda que não apareça imediatamente no faturamento. Esses ganhos são o alicerce para o crescimento futuro.
Contextos diferentes, realidades distintas
Outro ponto levantado é que o recorte das empresas avaliadas pode não ser representativo. Enquanto multinacionais contam com equipes de dados robustas e infraestrutura consolidada, médias empresas e mercados emergentes, como o Brasil, ainda enfrentam barreiras mais básicas — desde a falta de organização dos dados até times enxutos e limitações orçamentárias.
“O relatório traz uma amostra ampla (52 entrevistas, 300 iniciativas, 153 líderes), mas reconhece limitações: tende a refletir as maiores corporações globais e setores visíveis, deixando de fora especificidades de mercados emergentes como o Brasil”, diz Rodrigo Murta, CEO do Looqbox.
“O recorte certamente influencia” diz João Paulo Ribeiro. Grandes corporações em mercados maduros lidam com legados tecnológicos e estruturas pesadas de governança. Já em países emergentes, como o Brasil, há mais flexibilidade e menos camadas de aprovação, o que acelera testes e adoção. “Analisar apenas grandes empresas globais pode distorcer a leitura real do impacto”, opina.
“Empresas médias ou de mercados emergentes como o Brasil têm maior flexibilidade e abertura para experimentação. Isso significa que os números globais não podem ser interpretados de forma homogênea, pois os contextos são muito distintos”, analisa Cleber Brito.
“Apesar do estudo do MIT trazer insights relevantes, ele não pode ser tratado como um estudo epidemiológico (que exige amostragem probabilística e critérios rigorosos de representatividade). Isso gera viés de seleção e reduz a representatividade para PMEs, startups e mercados emergentes, como o Brasil”, aponta Rodrigo Gava, CTO e co-CEO da Vultus, focada em cibersegurança.

Dilemas antigos, novos nomes
Entre os obstáculos listados pelo estudo estão a falta de integração entre tecnologia e negócio e o fenômeno da “shadow AI” — quando colaboradores usam ferramentas sem supervisão da área de TI. Para o entrevistado, esses problemas não são exclusivos da IA generativa: já existiam na forma de “shadow IT” ou iniciativas desconectadas de estratégia. “A tecnologia só colocou uma lente de aumento sobre dilemas de gestão que sempre estiveram aí”, explica Rafael Franco.
“A diferença agora é que o fenômeno do “shadow AI” ficou mais evidente, porque a facilidade de uso da IA coloca ferramentas poderosas nas mãos de qualquer colaborador”, aponta João Paulo Ribeiro.
“O que é novo na IA generativa é a escala e a natureza do “shadow AI” — funcionários adotando ferramentas pessoais (como ChatGPT) de forma massiva, à frente das iniciativas oficiais”, diz Rodrigo Murta.
O ciclo do hype
A trajetória da IA generativa parece repetir o ciclo vivido por outras grandes inovações, como a internet ou o big data: entusiasmo inicial, frustração com resultados e, depois, consolidação com aplicações mais realistas.
Para Rodrigo Murta, da Looqbox, plataforma de Business IntelIigence (BI), o hype inicial faz parte natural do processo de inovação. “Sempre que surge uma nova tecnologia, há resistência e questionamentos. Quando inventaram a calculadora, muitos temeram que ninguém mais aprenderia matemática. A caneta esferográfica foi vista como o fim da beleza da caligrafia. A fotografia levantou dúvidas sobre o futuro dos retratistas. O mesmo acontece agora: estamos apenas passando por mais uma etapa desse ciclo de inovação e adaptação pelo qual a humanidade sempre atravessa”, compara.
“Estamos vivendo um novo ciclo do tipo hype → desilusão → consolidação. Aconteceu com várias outras tecnologias. Primeiro vem a euforia, depois a frustração e, para quem continua, vem o uso mais maduro e realista. Isso é normal. O importante é passar dessa fase sem queimar a credibilidade da tecnologia”, resume Rafael Franco.
“O diferencial agora é que a curva de aprendizado tende a ser mais curta, porque temos um ecossistema tecnológico muito mais maduro do que nas ondas anteriores. Este ciclo tende a ser mais rápido quando a empresa consegue priorizar algo estratégico, de impacto alto e viabilidade técnica dentro das suas plataformas e governança”, aponta Rubens Daniel, Head of Business Innovation LATAM da Getronics, empresa fornecedora global de serviços de tecnologia da informação.

O “GenAI divide”
A pesquisa também aponta para um possível abismo entre empresas que conseguem capturar valor da IA e as que ficam para trás. Esse “GenAI divide” pode ampliar desigualdades tanto entre setores quanto entre países.
“Empresas com estrutura digital já colhem resultados, enquanto outras se frustram com as primeiras tentativas. Isso pode gerar um abismo perigoso, que se reflete também no cenário internacional”, analisa Rafael Franco.
João Paulo Ribeiro alerta que o risco é real: empresas que conseguirem integrar a IA de forma estratégica tendem a acelerar seus ganhos competitivos, enquanto aquelas que não desenvolvem estrutura ou cultura adequada podem ampliar ainda mais o atraso. Segundo ele, em países sem políticas claras de inovação, essa disparidade tende a se aprofundar, aumentando a distância em relação às economias centrais.
O que os 5% bem-sucedidos ensinam
Embora a maioria dos projetos não tenha acelerado receita, os 5% de casos de sucesso revelam lições importantes: foco em problemas reais, dados de qualidade, equipes multidisciplinares e liderança capaz de integrar tecnologia e negócio.
Empresas que prosperam com IA têm pontos em comum: liderança comprometida, integração tecnológica consistente e cultura de experimentação. Elas não tratam a IA como um projeto isolado, mas como parte central da estratégia do negócio e isso faz toda a diferença nos resultados.
Em contrapartida, setores menos digitalizados ou países com menor acesso a tecnologia e talento podem ampliar o atraso competitivo. “Essa divisão não é inevitável, mas exige políticas públicas, investimentos em capacitação e, do lado das empresas, clareza estratégica para não ficar refém de experimentações pontuais”, aponta Rubens Daniel, da Getronics.
Rodrigo Murta destaca ainda ser importante separar o que é aprendizado do que é fracasso em produção. A fase de testes envolve inevitavelmente erros e ajustes, mas isso faz parte do processo de evolução. “Basta lembrar da chegada dos processadores de texto nos anos 1980: computadores eram introduzidos nas fábricas e muitos trabalhadores não sabiam usá-los. Esse período de experimentação foi essencial para que a tecnologia se consolidasse — e ele vale para a IA hoje”.
Contexto Brasil
No Brasil, a corrida pela adoção da IA generativa revela uma realidade distinta da observada em grandes economias. Enquanto multinacionais contam com equipes de dados robustas e infraestrutura consolidada, muitas empresas brasileiras ainda enfrentam barreiras básicas, como a falta de organização dos dados, recursos limitados e equipes enxutas.
Ao abordar o contexto nacional, Rodrigo Murta, CEO do Looqbox, diz que o Brasil corre o risco de ficar para trás se depender de Gen AI externa, deslocando valor e conhecimento para fora do país. “A China entendeu isso cedo e estabeleceu, como plano de governo, a meta de ser líder em inteligência artificial até 2030. O Brasil, por outro lado, parece mais preocupado em regulamentar do que em extrair valor da tecnologia, adotando muitas vezes um modelo europeu que já não é referência em inovação”, questiona. Por isso, deixo a provocação: nossa bandeira deveria inverter a ordem — não “ordem e progresso”, mas “progresso e ordem”, como bem demonstram os chineses.

Cleber Brito ressalta que empresas e países capazes de investir em infraestrutura, capacitação e governança conquistarão uma vantagem competitiva significativa. Em contrapartida, aqueles que se limitarem a pilotos superficiais correm o risco de comprometer sua relevância no mercado. No caso de países emergentes, como o Brasil, o cenário representa ao mesmo tempo um risco e uma oportunidade de salto tecnológico.
“Quem resolve melhor um problema, larga na frente, independentemente de usar GenAI ou não. Agora, as chances de quem usa bem GenAI resolver melhor um problema é consideravelmente maior do que quem usa só a Enciclopédia Britannica”, brinca Rodrigo Gava, CTO e co-CEO da Vultus.

Caminhos para avançar: para evitar cair nos 95% da estatística negativa, os especialistas recomendam:
–Definir claramente o problema antes de escolher a tecnologia
– Estabelecer governança para evitar o uso fragmentado da tecnologia e diretrizes de uso que garantam segurança, transparência e confiança
– Direcionar a IA para melhorar a jornada do cliente e eficiência operacional, e não apenas como instrumento de aumento imediato da receita
– Organizar os dados minimamente para que possam gerar valor
– Montar equipes híbridas, juntando profissionais de negócio e de tecnologia.
– Começar com pilotos pequenos, com métricas relevantes para cada contexto.
– Capacitar continuamente: não basta treinar algoritmos, é preciso treinar pessoas. O capital humano é o elo que transforma tecnologia em resultado de negócio
– Ter uma ambição clara e realista: começar pequeno, mas sempre com visão de integração futura, evitando soluções fragmentadas;
– Adotar o framework dos 3 Es — Educar, Explorar e Executar para dar clareza às etapas do processo