Da moeda física à tokenização: a corrida global pelo dinheiro digital

Tema que vem evoluindo e ganhando cada vez mais destaque nos noticiários nacionais e internacionais, o avanço da moeda digital é impulsionado por fatores como a aceleração tecnológica, o crescimento da inteligência artificial, disputas geopolíticas e mudanças no comportamento do consumidor.

Em um exercício de futurologia até 2030, o Portal Intelligence.Garden entrevistou dois especialistas – um do meio acadêmico e outro mercado – para analisar o impacto econômico dessa profunda transformação no conceito de dinheiro, marcada pela convivência entre diferentes ativos digitais e pelas disputas geopolíticas em torno do controle dessas novas formas de valor.

Nesse cenário, que ainda parece futurista, mas se aproxima rapidamente, bancos tradicionais devem se tornar provedores de infraestrutura, como a custódia de stablecoins, enquanto fintechs dominarão a interface com o usuário. Sistemas efetivamente distribuídos, sem banco ou governo intermediário, devem ampliar consideravelmente o alcance das transações P2P (peer-to-peer), realizadas diretamente entre duas pessoas.

Mais de cem países já estudam ou testam suas moedas digitais. Até 2030, pelo menos 30 deles devem ter suas CBDCs plenamente operacionais, como o Drex no Brasil, o e-CNY na China e o euro digital na Europa. O Federal Reserve também estuda, desde 2020, a criação de um “dólar digital” oficial, segundo o relatório “Money and Payments: The U.S. Dollar in the Age of Digital Transformation“, publicado em janeiro de 2022. Até 2025, no entanto, nenhuma decisão formal foi tomada.

“Moedas digitais de bancos centrais, como o Drex, vão liderar no Brasil, apoiadas pela confiança no Banco Central e pela infraestrutura do PIX, que facilita transações. Stablecoins privadas terão espaço, estimuladas pelo GENIUS Act de 2025, ainda que a obrigatoriedade de serem atreladas ao dólar possa limitar sua flexibilidade”, afirma Hugo Cayuela, professor da Fipecafi e mestre em Estratégia pela London Business School.

Stablecoins são um tipo de dinheiro digital com valor estável, reguladas pelo GENIUS Act – primeira legislação federal nos EUA a estabelecer diretrizes para stablecoins utilizadas como meio de pagamento, sancionada em julho de 2025.

Além disso, criptomoedas livres como o Bitcoin e pontos de fidelidade tokenizados devem se manter em nichos, voltados a investimentos ou programas de recompensa. “Não será uma batalha por supremacia, mas sim a uma sinergia”, diz Luiz Guardieiro, diretor de Receita da Portão 3.

“O DREX garantirá estabilidade e regulamentação; as stablecoins privadas darão agilidade global e redução de custos; os pontos de fidelidade tokenizados criarão uma nova camada de valor e flexibilidade para o consumidor”, enfatiza.

Bitcoin e Ethereum devem seguir como ativos de investimento e reserva de valor, mas com pouca utilização no cotidiano. “Sua relevância será maior para quem busca diversificação de portfólio e para o desenvolvimento de finanças descentralizadas (DeFi), mas não vejo que serão usados para a compra do café na padaria”, acrescenta Luiz Guardieiro.

Super-apps

O avanço dos super-apps também tem moldado o comportamento do consumidor, que busca conveniência, imediatismo e experiências unificadas. “Super-apps são aplicativos multifuncionais que reúnem vários serviços em uma única plataforma e tornam pagamentos instantâneos e mais baratos, incentivando consumidores a priorizar praticidade”, afirma Hugo Cayuela.

Segundo Cayuela, esse cenário leva os bancos a redefinirem seu papel: precisam deixar de ser apenas detentores de dinheiro e se posicionar como fornecedores de infraestrutura segura e confiável.

“Nesse ecossistema híbrido, as instituições tradicionais só sobreviverão e prosperarão se conseguirem pivotar de um modelo focado em produtos para um modelo centrado no cliente e na integração dos serviços que os clientes usam no dia a dia”, complementa Guardieiro.

PIX e Drex

No ambiente de tokenização, o PIX se destacou como divisor de águas na digitalização financeira do Brasil, funcionando como uma ferramenta de educação financeira. Ele habituou milhões de brasileiros a transacionar de forma digital, instantânea e segura, rompendo a dependência do dinheiro físico.

A digitalização por meio do PIX, do Drex e de transações descentralizadas deve ampliar a adesão, inclusive entre usuários de baixa renda, que utilizam Wi-Fi de hotspots – pontos de acesso público à internet sem fio, acessíveis por dispositivos móveis.

“O Pix provou que a população está disposta a abraçar a inovação quando ela é simples e vantajosa. Essa experiência é o alicerce cultural e tecnológico que facilitará a transição para um futuro ainda mais digital”, diz Guardieiro.

Com 4,5 bilhões de transações em 2024, o PIX popularizou os pagamentos P2P e prepara o terreno para o Drex e para stablecoins reguladas. Sua infraestrutura descentralizada tem potencial de volume muito superior ao projetado, já que não depende de sistemas centralizados.

Essa coexistência de ativos digitais deve beneficiar setores como o financeiro, o agronegócio, os serviços, o varejo e o e-commerce. O potencial dessas transações descentralizadas é muito maior que os números atuais, com hotspots incluindo populações de baixa renda.

“Ainda assim, 20% dos brasileiros sem acesso à internet enfrentam risco de exclusão, exigindo expansão de programas como o Wi-Fi Brasil para garantir equidade”, alerta Hugo Cayuela, para quem a entrada na economia digital só será verdadeiramente inclusiva “se vier acompanhada de políticas públicas que garantam conectividade e educação para todos, evitando aprofundar a desigualdade social”.

Marcos regulatórios no Brasil

No campo regulatório, o Brasil precisa consolidar marcos legais robustos e ágeis, alinhados às experiências internacionais, como o MiCA europeu, mas com adaptação local. O país avançou com a Lei das Criptomoedas e o projeto-piloto do Drex, mas ainda precisa regulamentar stablecoins e reforçar a proteção de dados e a cibersegurança.

“Proteger dados exige reforçar a LGPD com auditorias e criptografia. Faltam agilidade regulatória e educação digital para apoiar o potencial massivo de transações P2P, que não dependem de controle centralizado”, diz Cayuela.

Por outro lado, para Guadieri, essa regulação não deve ser apenas sobre tecnologia, mas também sobre pessoas: “Será fundamental investir em ensino digital para que a população possa usar essas novas ferramentas com segurança e confiança, evitando fraudes e aprofundando a inclusão digital em vez da exclusão”, diz.

O risco das “fake token”

À medida que o dinheiro em papel perde espaço e a sociedade se adapta a um universo cada vez mais digital, a confiança do cidadão comum se torna o principal alicerce do novo sistema financeiro.

Se no passado a segurança era associada ao cofre de um banco físico, hoje ela se desloca para as telas dos celulares, onde transações acontecem em segundos — e, muitas vezes, sob risco. A confiança do cidadão médio é a fundação para qualquer sistema financeiro, e no ambiente digital, ela é ainda mais sensível. A transição da carteira física para o digital não é apenas sobre tecnologia, mas sobre a capacidade de construir e manter essa confiança em um mundo cheio de novos riscos.

Fraudes envolvendo “fake tokens”, esquemas de pirâmide e instabilidades em plataformas descentralizadas se multiplicam no ambiente digital. Para o cidadão médio, que não domina os detalhes técnicos do blockchain ou da criptografia, a linha entre uma inovação legítima e um golpe bem estruturado pode ser imperceptível.

“O que o cidadão entende não é a tecnologia por trás, mas a experiência de uso. Um golpe bem-sucedido pode ser mais impactante para a confiança do que um milhão de transações seguras. As pessoas vão acabar se ancorando em empresas que confiam mais e que ofereçam soluções de ponta a ponta”, alerta Guardieri.

“Em um cenário cada vez mais descentralizado, onde as transações escapam dos sistemas tradicionais, interfaces intuitivas e respostas rápidas a incidentes serão fundamentais para preservar a confiança do usuário”, diz Cayuelo.

Cenários até 2030

Para os especialistas, o Brasil caminha de forma irreversível rumo a uma economia tokenizada, baseada em contratos inteligentes até 2030. No entanto, essa transição depende da capacidade do país de garantir inclusão social e confiança pública.

“Não vejo um freio, mas sim uma evolução gradual e estratégica, onde setores como o financeiro e o agronegócio serão os líderes da adoção”, diz Guardieiro.

“O Brasil avança para uma economia digitalizada, com o Drex e contratos inteligentes em setores como agronegócio e varejo, onde transações P2P, livres de sistemas centralizados, têm potencial muito maior que as projeções, impulsionadas por Wi-Fi de hotspots”, afirma Cayuela. Ele destaca, no entanto, que regulações lentas, exclusão digital rural e resistência cultural ainda podem ser fatores limitantes para esse avanço.








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