Advogado Guilherme Coutinho analisa fronteiras jurídicas da IA e pontos chaves do PL 2338 em tramitação no Congresso.
Denúncias sobre o uso de dados protegidos por direitos autorais para treinar ferramentas de inteligência artificial, envolvendo gigantes do setor como a Meta e a OpenAI, têm gerado intensos debates éticos e legais nos setores jurídico e de tecnologia. Na França e Reino Unido, por exemplo, a Meta está sendo processada por autores franceses por utilizar livros sem autorização.
A principal controvérsia refere-se à possível violação dos direitos autorais, que no Brasil são protegidos pela Lei nº 9.610 de 1998. A alegação é a de que esses modelos de IA utilizam grandes volumes de dados, como imagens, textos e músicas protegidos por direitos autorais para identificar padrões e, a partir deles, gerar novos conteúdos, sem autorização,
O debate travado em contexto global gera questionamentos e promete se estender pelos próximos anos. No Brasil, a controvérsia também vem ganhando força entre advogados especializados, legisladores e juristas. Em tramitação no Congresso Nacional, o Projeto de Lei (PL) 2338 que dispõe sobre o uso de inteligência artificial, tenta equilibrar o uso de dados em IA à proteção aos direitos autorais e à inovação, sem implicar em danos aos titulares das obras.
Uma das principais preocupações seria a de atualizar e aperfeiçoar a legislação brasileira, que é de 1998, para incluir questões específicas sobre o uso da inteligência artificial.
Nesse caso, o Brasil adota a mesma visão de outros países: a de que a autoria é humana. A Lei 9.610 de 1998 é clara ao estabelecer que apenas seres humanos sejam protegidos pela criação de suas obras. Ou seja, as obras intelectuais e demais criações tuteladas pela propriedade intelectual são fundamentalmente criações do espírito humano, envolvendo noções como intenção, criatividade e subjetividade, particularidades que as máquinas não possuem e justamente o que as diferencia dos criadores humanos de carne e osso.
A própria Constituição Federal, no artigo 5º, XXVII, consagra o tema como um direito fundamental, assegurando aos autores “o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”.
Por outro lado, sistemas de IA utilizados pela reportagem do Portal Intelligence.Garden defendem, em suas respostas, que não reproduzem obras completas, mas apenas se “inspiram em estilos e padrões, o que não configuraria desrespeito às leis de propriedade intelectual”.
Conforme alegado por uma IA: “Nunca forneço conteúdos protegidos por direitos autorais de maneira literal ou integral, como livros, letras de música ou artigos publicados. Posso oferecer resumos ou criar algo original inspirado em estilos e temas, mas sempre respeitando as leis de propriedade intelectual.”
O sócio da Coutinho Silva Sociedade de Advocacia e doutor em Direitos Autorais pela USP, Guilherme Coutinho justifica: “Estilos não são protegidos. Ninguém tem exclusividade sobre gêneros musicais como reggae, rock e afins. Ter influência de outros artistas, desde que não haja cópia, é permitido. Assim, “inspirar-se” é lícito, mas quando o estilo de um autor é reproduzido a ponto de ser identificável, especialmente se a IA for treinada em obras protegidas sem autorização, pode configurar violação. A fronteira entre inspiração e cópia fica mais difusa com IA — e isso exige uma análise técnica e jurídica caso a caso”.
Nesse contexto, se a IA gera algo que “soa como” de uma artista famosa de forma deliberada, há risco real de conflito com os direitos patrimoniais e de personalidade.
“Enquanto um ser humano intuitivamente mistura referências com suas próprias vivências e características — sendo a inspiração um estímulo emocional, uma atmosfera ou até um modelo estético —, isso não implica necessariamente em reprodução de obras de terceiros. Já uma máquina pode, de forma isolada, processar dados específicos, o que é um mecanismo totalmente diferente”, argumenta o advogado.
Fica evidenciada a necessidade de regulamentações claras e de boas práticas que garantam o equilíbrio entre o progresso tecnológico e a preservação dos direitos dos titulares das obras.
“A lei parte do pressuposto de que toda obra protegida é fruto da criação humana. Então, do ponto de vista legal, os produtos gerados por IA, sem envolvimento criativo humano direto, nem poderiam ser chamados de “criações” no sentido jurídico. Eles não seriam protegidos pela lei e estariam, em tese, em domínio público”, aponta.
Na opinião de Coutinho, o que falta na atualidade é uma regulação clara que trate não só da natureza jurídica desses conteúdos, mas também da etapa anterior: o uso de obras protegidas para treinar sistemas de IA — o que envolve mineração de texto e dados.
“Esse ponto ainda está completamente aberto na legislação brasileira e precisa ser enfrentado”, diz.
É possível falar em uma “criatividade artificial”?
Embora seja um primeiro esforço para assegurar um ambiente de regulamentação ao setor, o PL que vem sendo discutido no Congresso vem sendo alvo de críticas por não destinar uma relevância maior ao tema dos direitos autorais, deixando a classe artística suscetível ao uso de suas obras por sistemas de IA.
“O PL 2338/2023 não trata da questão da titularidade ou da IA como sujeito de direitos. O foco é outro — especialmente a mineração de dados. A discussão sobre a autoria de conteúdos gerados por inteligência artificial ainda é recente no Brasil, mas já vem sendo enfrentada por outros países, como os Estados Unidos”, explica Guilherme Coutinho.
Ele destaca o modelo de Copyright Office americano que tem sinalizado um critério importante: quanto menor a intervenção humana no processo, menor a chance de proteção por direito autoral.
“Quando a IA gera algo a partir de comandos simples ou automáticos, entende-se que o produto não é uma criação humana — e, portanto, não há proteção nem titularidade. Esse conteúdo seria de uso livre”.
Por outro lado, se a inteligência artificial é usada como uma mera ferramenta — como um processador de texto, uma câmera fotográfica ou qualquer outra tecnologia que auxilia a criação humana —, aí sim pode haver proteção.
“O elemento central continua sendo a participação criativa do ser humano. O desafio está justamente nesses tons de cinza, entre o uso instrumental da tecnologia e a automação completa do processo”, salienta o advogado.
Direito de Opt
Um dos pontos levantados no Projeto de Lei 2338/2023 é o direito de opt, ou seja, a possibilidade de o titular consentir ou se opor ao uso de sua obra por sistemas de IA. O PL também não assegura remuneração por parte das empresas do setor de tecnologia aos criadores humanos, cujas obras forem usadas como fonte de “inspiração” para gerar um conteúdo novo.
Questionado sobre o mecanismo de consentimento, o advogado Guilherme Coutinho defende que a adoção depende muito do contexto de uso.
“O modelo europeu prevê mecanismos de opt-in e opt-out, mas nem sempre essa distinção resolve a questão. Se estivermos falando de uma finalidade legítima, como o uso de obras para pesquisas científicas na área da saúde — por exemplo, no desenvolvimento de vacinas —, me parece razoável que esse tipo de uso seja permitido independentemente de consentimento do titular. Trata-se de uma limitação autorizada por lei, voltada ao interesse público, e que vai além da lógica do opt-in”, diz.
Agora, no caso de usos com finalidade comercial, segundo o especialista, o cenário é outro. “Nesse caso, independentemente de haver um sistema de opt-in ou opt-out, o uso de obras protegidas deveria estar condicionado à autorização do titular. Essa distinção entre finalidade pública e exploração econômica precisa estar no centro do debate sobre direitos autorais e IA”, conclui.