Imagine a cena! Você abre o computador, digita um prompt em uma plataforma de inteligência artificial generativa e, em segundos, surge diante de você uma ilustração impecável, um texto criativo ou até mesmo uma melodia que poderia muito bem estar na trilha sonora de um filme de Hollywood. Surge então a pergunta inevitável: quem é o dono dessa obra? Você, que escreveu o comando? A máquina, que materializou o resultado? Ou será que ninguém tem esse título?
Essa dúvida ultrapassa o debate filosófico ou acadêmico e alcança efeitos práticos no bolso de artistas, na estratégia de empresas e nas respostas que advogados e juízes precisam dar a disputas em expansão.

A base das legislações de direitos autorais, no mundo todo, parte de uma premissa antiga de que apenas seres humanos podem ser considerados autores. Essa ideia está embutida no DNA do direito autoral, que historicamente foi construído para proteger a criatividade humana contra cópias indevidas. Afinal, a originalidade é vista como fruto de talento, esforço e, muitas vezes, da subjetividade.
Ora, se a IA não tem sentimentos, não tem “intenção criativa” e funciona a partir de cálculos matemáticos, seria ela capaz de ser titular de direitos autorais? A resposta, até agora, é não. Máquinas não são sujeitos de direito, ao menos não no estado atual do direito.
Mas atenção, isso não significa que os resultados gerados por IA estejam em uma terra sem lei. Pelo contrário. Eles podem ser explorados, registrados e até disputados, só que a autoria geralmente é atribuída ao humano que participou do processo.
Outro nuance interessante é a questão do papel do humano no prompt e na curadoria. Digitar “faça uma pintura no estilo de Van Gogh com girassóis e uma lua neon” é somente uma ideia vaga ou já pode ser considerado ato criativo suficiente para gerar proteção? Os juristas se dividem.
Alguns entendem que o prompt, por mais simples que seja, já traduz uma escolha criativa. Outros defendem que apenas quando o humano vai além, ajusta parâmetros, refina saídas, escolhe entre versões e edita, é que se pode falar em intervenção criativa relevante.
De todo modo, há um consenso emergente: quanto maior a participação humana, maior a chance de reconhecimento da autoria. Já obras inteiramente geradas pela IA, sem intervenção criativa posterior, têm menos chances de serem protegidas por copyright.
Alguns tribunais e órgãos oficiais em alguns países já se manifestaram. Nos Estados Unidos, o U.S. Copyright Office já negou registros de obras criadas integralmente por IA, como no caso do Théâtre D’opéra Spatial feito com MidJourney, por ausência de autoria humana. Em 2023, publicou diretrizes exigindo a declaração das partes humanas e artificiais em pedidos de registro. Em 2025, manteve a exigência de autoria humana, mas admitiu obras com contribuição criativa significativa do autor, como no caso A Single Piece of American Cheese.
No Reino Unido, a legislação prevê que, em obras geradas por computador, o autor é quem fez os “arranjos necessários” para sua criação. Na prática, a autoria é atribuída ao humano que programou, dirigiu ou controlou o processo. Ainda não há jurisprudência consolidada sobre obras feitas com IA generativa.
Na União Europeia, a proteção autoral segue vinculada à criação humana. O Parlamento e especialistas discutem a necessidade (ou não) de um novo regime jurídico para lidar com “autoria artificial”, mas por ora prevalece o entendimento de que conteúdos feitos integralmente por IA não têm proteção.
Já no Brasil, não existe uma lei específica sobre autoria em obras criadas por inteligência artificial. Ainda assim, a Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98) já oferece uma resposta central, apenas pessoas físicas podem ser consideradas autoras. Isso significa que a máquina não cria direitos sobre o resultado; o que pode ser protegido é a contribuição humana criativa envolvida no processo. O tema, no entanto, tem gerado controvérsia no Judiciário. Em 2025, o TJ/SC admitiu a cobrança de direitos pelo ECAD sobre músicas produzidas com IA, decisão que abriu precedente inédito e reacendeu o debate sobre exploração econômica de conteúdos híbridos. Paralelamente, no Congresso, o PL 2.338/23 (PL da IA) discute regras gerais para o uso de inteligência artificial, mas ainda não enfrenta diretamente a questão autoral.
Esses posicionamentos deixam claro que estamos apenas no começo de uma longa disputa jurídica.
Ao falarmos sobre os impactos no mercado criativo, a história ganha contornos ainda mais interessantes. Se a IA é capaz de produzir em segundos aquilo que um ilustrador demoraria dias, o mercado inevitavelmente sente os efeitos.
Muitos artistas têm se posicionado contra o uso indiscriminado dessas ferramentas, alegando concorrência desleal. Afinal, enquanto um humano precisa estudar, praticar e se dedicar por anos, a máquina consegue entregar algo “parecido” com um simples clique.
Além disso, há a questão do treinamento das IAs, considerando que grande parte dessas ferramentas foi alimentada com obras de artistas humanos, muitas vezes sem consentimento. Isso levanta debates sobre uso indevido, plágio e até violações de propriedade intelectual.
Do outro lado, há quem veja na IA uma aliada poderosa. Em vez de competir, alguns artistas utilizam essas ferramentas como extensão do próprio processo criativo, ganhando tempo e ampliando possibilidades. Nesse cenário, a IA não substitui, mas multiplica a criatividade humana.
No campo jurídico, os desafios são igualmente instigantes. Imagine uma empresa que lança uma campanha publicitária usando imagens geradas por IA. Se alguém alega plágio, quem responde? A empresa que usou a ferramenta? O desenvolvedor do sistema? Ou o próprio usuário que escreveu o prompt?
Esse tipo de dúvida já está chegando aos tribunais e tende a se multiplicar nos próximos anos. Por isso, empresas mais cautelosas estão adotando cláusulas específicas em contratos, prevendo responsabilidades em caso de violações de direitos autorais decorrentes do uso de IA.
Outro ponto importante é a exploração comercial. Pode-se vender um livro ilustrado inteiramente por IA? Pode-se registrar como marca um logotipo gerado automaticamente? A resposta, novamente, varia de acordo com o país e com a interpretação das autoridades.
No meio desse turbilhão, é fundamental não perder de vista valores centrais, como a ética, transparência e reconhecimento do esforço humano.
É ético vender uma obra como se fosse “autoral” quando, na verdade, foi criada em segundos por uma IA? É justo não mencionar o uso da ferramenta, como se a criação fosse puramente humana? E mais: até que ponto os consumidores têm o direito de saber se uma música, um livro ou uma arte foi feita por inteligência artificial?
Essas perguntas não têm respostas prontas, mas precisam estar no radar de todos que trabalham com criatividade, direito e tecnologia.
Se tem algo que a história da tecnologia nos ensina é que nenhuma ferramenta veio para acabar com a criatividade humana. O que muda é o formato. A fotografia não acabou com a pintura, o cinema não eliminou o teatro e o streaming não matou o rádio. A IA também não vai extinguir artistas e escritores, mas vai exigir que repensemos papéis, direitos e responsabilidades.
A grande provocação talvez seja, em vez de perguntarmos “quem é o dono da obra da IA?”, poderíamos começar a refletir “como queremos estruturar o ecossistema criativo daqui para frente?”. Um ecossistema que valorize o humano, respeite a lei, mas também abrace as oportunidades de uma nova era tecnológica.
No final das contas, a IA pode até gerar a obra. Mas quem assina a responsabilidade, jurídica, ética e social, ainda somos nós. E é nesse detalhe que mora a verdadeira autoria, na capacidade de decidir, escolher e assumir os impactos daquilo que criamos, seja com lápis, pincel ou algoritmo. Nossa missão sempre será refletir.
Larissa Pigão, colunista do Intelligence.Garden. Advogada especialista em Direito Digital. Mestranda pela Universidade Autônoma de Lisboa (UAL).